A nova proposta de reforma administrativa (PEC 32/2020) tem sido amplamente debatida na sociedade brasileira. Além de ter o potencial de afetar negativamente a qualidade do serviço público prestado ao cidadão, ela pode aumentar as desigualdades dentro do funcionalismo público, principalmente relativas a gênero. O setor público reproduz tradicionalmente as dificuldades enfrentadas pelas mulheres no mercado de trabalho e na sociedade. Por exemplo, quanto mais próximo dos cargos de poder, menor a representatividade feminina. Essas assimetrias também se refletem nas diferenças salariais.
Segundo o Atlas do Estado Brasileiro de 2017, as mulheres recebem salários menores que os homens em todos os poderes: no Executivo, recebem 24,7% menos que homens, no Legislativo, 12%, e no Judiciário, 6,2%. E mesmo com salários proporcionalmente inferiores nos três Poderes, as mulheres eram maioria nos quadros de servidores públicos no Poder Legislativo (61,1%) e Judiciário (53,15%) em 2019. A presença feminina também é maioria nos quadros de servidores estaduais (55,95%) e municipais (65,60%). Ao mesmo tempo, elas ocupam poucas posições de poder no serviço público. Nos últimos 35 anos a diferença de salários entre mulheres e homens ficou 50% maior no Executivo.
Já no Judiciário, ela ficou cerca de 50% menor, apesar de ainda os homens ganharem maiores salários. No Judiciário, somente duas ministras entre os 11 membros ocupam cargos no mais importante tribunal do país, padrão que se repete nos cargos eletivos. As mulheres ocupam apenas 15% das cadeiras na Câmara dos Deputados e no Senado, para ficar apenas no nível federal. Ao considerar que as mulheres são a maior parte na população (51,8%), percebe-se que há uma sub-representação de gênero nos cargos de poder e uma discrepância salarial no funcionalismo público. Essas desigualdades, no entanto, não só não estão na pauta da PEC 32 como algumas de suas medidas podem, inclusive, aumentá-las.
A proposta atual da PEC afeta diretamente a maior parte dos servidores públicos que ocupam os cargos operacionais e de atendimento ao público, enquanto deixa de fora aqueles que recebem salários mais altos e regalias – como os membros dos poderes Legislativo e Judiciário. A questão é que estes cargos de menor nível hierárquico mais afetados pela reforma são majoritariamente femininos —como profissionais da educação, saúde e assistência -, enquanto os quadros que ficam fora da reforma são majoritariamente masculinos— como a magistratura. Além disso, outras medidas da PEC 32 também tendem a aumentar desigualdades, como o fato de colocar em xeque a estabilidade das carreiras. Em uma futura disputa sobre quais delas se manterão estáveis, está claro que aquelas de maior poder terão maior chance de barganha, enquanto as carreiras menos valorizadas terão menor espaço.
Incluem-se aí carreiras nas áreas de saúde, assistência e educação, ocupadas por mulheres, que saem em desvantagem em relação a carreiras como as do Judiciário, de auditoria, de controle e fazendárias, majoritariamente ocupadas por homens. Por fim, a proposta de criação dos “cargos de liderança”, que politizam a máquina ao acabarem com as funções gratificadas exclusivas a concursados, também dificultarão ainda mais o acesso de mulheres a cargos de poder. A esta altura do debate, está claro que as medidas propostas pela PEC 32 nnão terão impacto imediato nos gastos e podem comprometer a eficiência e o funcionamento do Estado. Ainda assim, é essencial evidenciar seus efeitos também nas desigualdades de gênero. Enquanto a sociedade reconhece a necessidade de diminuir o fosso entre homens e mulheres, nas mais diferentes esferas, o poder público brasileiro atua no caminho inverso. Nesse sentido, é inadmissível que tenhamos uma reforma administrativa capaz de aprofundar as desigualdades de gênero no serviço público.
Fonte: UOL Notícias.